Excertos do livro Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida: um abismo intransponĂvel de Murray Bookchin.
Trecho de Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida: um abismo intransponĂvel - Traduzido e selecionado por Felipe CorrĂŞa, retirado de anarkismo.net
AUTONOMIA INDIVIDUAL E LIBERDADE SOCIAL
Por cerca de dois sĂ©culos, o anarquismo – um corpo extremamente ecumĂŞnico de idĂ©ias antiautoritárias – desenvolveu-se na tensĂŁo entre duas tendĂŞncias basicamente contraditĂłrias: um comprometimento pessoal com a autonomia individual e um comprometimento coletivo com a liberdade social. Essas tendĂŞncias nunca se harmonizaram na histĂłria do pensamento libertário. De fato, para muitos do sĂ©culo passado, elas simplesmente coexistiam dentro do anarquismo como uma crença minimalista de oposição ao Estado, ao invĂ©s de uma crença maximalista que articulasse o tipo de nova sociedade que tinha de ser criada em seu lugar.(...)
ANARCO-INDIVIDUALISMO
Com a emergĂŞncia do anarco-sindicalismo e do anarco-comunismo nos fins do sĂ©culo XIX e inĂcio do sĂ©culo XX, a necessidade de se resolver a tensĂŁo entre as tendĂŞncias individualista e coletivista tornou-se essencialmente obsoleta. O anarco-individualismo foi, em grande medida, marginalizado pelos movimentos operários socialistas de massa, dos quais muitos anarquistas consideravam-se a esquerda. Em uma Ă©poca de violentos levantes sociais, marcada pelo surgimento de um movimento de massas da classe trabalhadora que teve seu auge nos anos 1930 e na Revolução Espanhola, os anarco-sindicalistas e anarco-comunistas, nĂŁo menos que os marxistas, consideravam o anarco-individualismo um exotismo pequeno-burguĂŞs. Eles nĂŁo raro o atacavam, de maneira bastante direta, acusando-o de ser um capricho de classe-mĂ©dia, muito mais radicado no liberalismo do que no anarquismo.(...)
Raramente os anarco-individualistas exerceram influĂŞncia sobre a nascente classe operária. Eles expressavam sua oposição de forma pessoal e peculiar, especialmente em panfletos inflamados, comportamentos abusivos, e estilos de vida extravagantes nos guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como uma crença, o anarquismo individualista permaneceu, em grande medida, um estilo de vida boĂŞmio, mais evidente em suas reivindicações de liberdade sexual (“amor livre”) e no fascĂnio pelas inovações na arte, no comportamento e nas vestimentas.(...)
Nos tradicionalmente individualistas e liberais Estados Unidos e Inglaterra, os anos 1990 estĂŁo transbordando de auto-intitulados anarquistas que – descontando a retĂłrica radical exibicionista – vĂŞm cultivando um anarco-individualismo moderno que chamarei de anarquismo de estilo de vida. Suas preocupações com o ego, sua unicidade e seus conceitos polimorfos de resistĂŞncia vĂŞm constantemente desgastando o caráter socialista da tradição libertária.(...)
ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA
Num sentido bastante concreto, eles [os anarquistas de estilo de vida] nĂŁo sĂŁo mais socialistas – defensores de uma sociedade libertária comunalmente orientada – e abstĂŞm-se de qualquer comprometimento com um confronto social organizado e programaticamente coerente contra a ordem existente.(...)
Aventurismo ad hoc, ostentação pessoal, uma aversĂŁo Ă teoria estranhamente similar Ă s tendĂŞncias anti-racionais do pĂłs-modernismo, celebrações de incoerĂŞncia teĂłrica (pluralismo), um compromisso basicamente apolĂtico e antiorganizacional com a imaginação, o desejo, o ĂŞxtase e um encantamento da vida cotidiana intensamente voltado para si mesmo refletem o preço que a reação social cobrou do anarquismo euro-americano nas Ăşltimas duas dĂ©cadas.(...)
O ego – mais precisamente sua encarnação em vários estilos de vida – tornou-se uma idĂ©ia fixa para muitos anarquistas pĂłs-1960, que estĂŁo perdendo contato com a necessidade de uma oposição organizada, coletiva e programática Ă ordem social existente. “Protestos” sem firmeza, traquinagens sem objetivo, a afirmação dos prĂłprios desejos, e uma “recolonização” muito pessoal da vida cotidiana, sĂŁo um paralelo aos estilos de vida psicoterápicos, new age, auto-orientados de baby boomers entediados e membros da Geração X.(...)
O anarquismo de estilo de vida, assim como o individualista, aporta um desdĂ©m para com a teoria, de ascendĂŞncias mĂsticas e primitivistas geralmente muito vagas, intuitivas, e mesmo anti-racionais, analisadas friamente.(...)
Sua linha ideolĂłgica Ă© basicamente liberal, fundamentada no mito do indivĂduo completamente autĂ´nomo cujas reivindicações da prĂłpria soberania se valem de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrĂnsecos”, ou, em um nĂvel mais sofisticado, do eu transcendental kantiano produtor de toda a realidade cognoscĂvel. Essas tradicionais visões vĂŞm Ă tona no “eu” ou no Ăşnico (ego) de Max Stirner, que tem em comum com o existencialismo a tendĂŞncia a absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivĂduo auto-orientado.(...)
Ao negar as instituições e a democracia, o anarquismo de estilo de vida isola-se da realidade social para que assim possa esfumar-se com uma fútil raiva ainda maior, continuando, por meio disso, a ser uma travessura subcultural para ingênuos jovens e entediados consumidores de roupas pretas e pôsteres excitantes.(...)
O poder, que sempre existirá, pertencerá ou ao coletivo, em uma democracia cara-a-cara e claramente institucionalizada, ou aos egos de poucos oligarcas que produzirĂŁo uma “tirania das organizações sem estrutura”.(...)
O isolamento do anarquismo de estilo de vida e seus fundamentos individualistas devem ser considerados responsáveis por restringir o desenvolvimento do ingresso de um potencial movimento libertário de esquerda numa esfera pública cada vez mais reduzida.(...)
A bandeira negra, que os revolucionários defensores do anarquismo social levantaram nas lutas insurrecionais na Ucrânia e Espanha, torna-se agora um “sarongue” da moda, para deleite de chiques pequeno-burgueses.(...)
UM TIPO DE ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA: A TAZ DE HAKIN BEY
A T.A.Z. Ă© tĂŁo passageira, tĂŁo evanescente, tĂŁo inefável em contraste com o Estado e a burguesia formidavelmente estáveis que “assim que a T.A.Z. Ă© nomeada (...) ela deve desaparecer, ela vai desaparecer (...) e brotará novamente em outro lugar”. A T.A.Z., de fato, nĂŁo Ă© uma revolta, mas sim uma simulação, uma insurreição igualmente vivida na imaginação de um cĂ©rebro juvenil, uma retirada segura para a irrealidade. Entretanto, Bey declama: “NĂłs a recomendamos [a T.A.Z.], pois ela pode fornecer a qualidade do enlevamento, sem necessariamente [!] levar Ă violĂŞncia e ao martĂrio”. Mais precisamente, como um happening de Andy Warhol, a T.A.Z. Ă© um evento passageiro, um orgasmo momentâneo, uma expressĂŁo fugaz da “força de vontade” que Ă©, de fato, uma evidente impotĂŞncia em sua capacidade de deixar qualquer marca na personalidade, subjetividade ou mesmo na auto-formação do indivĂduo, e menos ainda em modificar eventos ou a realidade. (...)
A burguesia não tinha nada a temer com essas declamações de estilo de vida. Com a sua aversão pelas instituições, organizações de massa, sua orientação amplamente subcultural, sua decadência moral, sua celebração da transitoriedade e sua rejeição de programas, esse tipo de anarquismo narcisista é socialmente inócuo e, com freqüência, meramente uma válvula segura para o descontentamento com a ordem social dominante. Com Bey, o anarquismo de estilo de vida foge de toda militância social significativa e do firme compromisso com os projetos duradouros e criativos, quando se dissolve nas queixas, no niilismo pós-modernista e na confusão. O senso nietzschiano de superioridade elitista.
O preço que o anarquismo pagará se permitir que este absurdo substitua os ideais libertários de um perĂodo anterior será enorme. O anarquismo egocĂŞntrico de Bey, com seu afastamento pĂłs-modernista em direção Ă “autonomia” individual, Ă s “experiĂŞncias-limite” foucaultianas, e ao ĂŞxtase neo-situacionista, ameaça tornar a palavra anarquismo polĂtica e socialmente inocente – uma simples moda para o gozo dos pequenos burgueses de todas as idades.
ANARQUISMO SOCIAL
[Até hoje] os anarquistas não criaram nem um programa coerente, nem uma organização revolucionária para proporcionar uma direção ao descontentamento da massa que a sociedade contemporânea está criando.(...)
O anarquismo social, a meu ver, Ă© feito de uma essĂŞncia fundamentalmente diferente, herdeira da tradição iluminista, com a devida consideração aos seus limites e imperfeições. Dependendo de como se define a razĂŁo, o anarquismo social celebra a mente humana pensante sem, de forma alguma, negar a paixĂŁo, o ĂŞxtase, a imaginação, o divertimento e a arte. Contudo, ao invĂ©s de materializá-las em categorias nebulosas, ele tenta incorporá-las na vida cotidiana. O anarquismo social está comprometido com a racionalidade, embora se oponha Ă racionalização da experiĂŞncia; com a tecnologia, embora se oponha Ă “mega-máquina”; com a institucionalização social, embora se oponha ao sistema de classes e Ă hierarquia; com uma polĂtica genuĂna, baseada na coordenação confederal de municipalidades ou comunas, pelo povo, com democracia direta cara-a-cara, embora se oponha ao parlamentarismo e ao Estado.
Essa “comuna das comunas”, para utilizar um slogan tradicional das revoluções anteriores, pode ser indicada, de maneira apropriada, como sendo o comunalismo. No entanto, os oponentes da democracia como “sistema”, ao contrário, descrevem a dimensĂŁo democrática do anarquismo como uma administração majoritária da esfera pĂşblica. ConseqĂĽentemente, o comunalismo busca a liberdade, ao invĂ©s da autonomia, nesse senso que eu a contrapus. Ele rompe categoricamente com o ego boĂŞmio, liberal, psico-pessoal stirneriano, por este ser um soberano encerrado em si mesmo, afirmando que a individualidade nĂŁo emerge ab novo, enfeitada no nascimento com “direitos naturais”, e vĂŞ a individualidade, em grande medida, como o trabalho em constante mudança do desenvolvimento social e histĂłrico, um processo de autoformação que nĂŁo pode ser petrificado pelo biologismo e nem preso por dogmas limitados temporariamente.(...)
A democracia nĂŁo Ă© antitĂ©tica ao anarquismo; o critĂ©rio de decisĂŁo pela maioria e as decisões nĂŁo consensuais tambĂ©m nĂŁo sĂŁo incompatĂveis com uma sociedade libertária.(...)
O aspecto mais criativo do anarquismo tradicional Ă© o seu comprometimento com quatro princĂpios básicos: uma confederação de municipalidades descentralizadas, uma firme oposição ao estatismo, uma crença na democracia direta e um projeto de uma sociedade comunista libertária.(...)
Em resumo, o anarquismo social deve afirmar, resolutamente, suas diferenças com o anarquismo de estilo de vida. Se um movimento social anarquista nĂŁo pode traduzir seus quatro princĂpios – confederalismo municipal, oposição ao estatismo, democracia direta e, finalmente, o comunismo libertário – em uma viva prática, em uma nova esfera pĂşblica; se esses princĂpios se enfraquecem como suas memĂłrias de lutas passadas em declarações e encontros cerimoniais; pior ainda, se eles sĂŁo subvertidos pela IndĂşstria do ĂŠxtase “libertária” e pelos teĂsmos asiáticos quietistas, entĂŁo seu centro socialista revolucionário terá de ser restabelecido sob um novo nome.
Certamente, já nĂŁo Ă© mais possĂvel, do meu ponto de vista, chamar alguĂ©m de anarquista sem adicionar um adjetivo qualificativo que o distinga dos anarquistas de estilo de vida. Minimamente, o anarquismo social está radicalmente em desacordo com o anarquismo que Ă© focado no estilo de vida, a invocação neo-situacionista ao ĂŞxtase e a soberania do ego pequeno burguĂŞs que cada vez contrai-se mais. Os dois divergem completamente em seus princĂpios de definição – socialismo ou individualismo. Entre um corpo revolucionário comprometido de idĂ©ias e prática, por um lado, e o anseio vagabundo para o ĂŞxtase e a auto-realização privados de outro, nada pode haver em comum. A mera oposição do Estado pode bem unir o lĂşmpem fascista com o lĂşmpem stirneriano, um fenĂ´meno que nĂŁo está sem seus precedentes histĂłricos.
PERSPECTIVAS PREOCUPANTES
A menos que eu esteja gravemente errado – e espero estar – os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo estĂŁo sofrendo um desgaste de longo alcance ao ponto em que a palavra anarquia se tornará parte do elegante vocabulário burguĂŞs do sĂ©culo XXI – desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.
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