As ruínas do futebol - Estado Alterado

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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

As ruínas do futebol


- Por Ramon Carlos


Eduardo Galeano, amante do futebol, uma vez escreveu sobre os Torcedores que

uma vez por semana, foge de casa e vai ao estádio.

Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.

Em alguns estados brasileiros, já nos tiraram as bandeiras, os foguetes, os tambores, as serpentinas e o papel picado, principalmente no estado de São Paulo, casa de quatro clubes gigantescos e onde estão 3 dos 4 clubes com mais torcedores. São Paulo tem sido o túmulo do futebol brasileiro, mas os cariocas estão páreos na disputa por este “título”.

No último domingo (17), Vasco e Fluminense disputaram a Final da Taça Guanabara, conhecida como a Taça mais charmosa do Brasil. Dois episódios lamentáveis: a confusão anterior ao clássico e os cantos homofóbicos de um jogador durante a comemoração do título vascaíno.

Começamos pelo segundo episódio. O chamado “futebol raiz” que o brasileiro se vangloria de deter, quando a torcida, nos raros casos, consegue ainda festejar de forma autêntica, com sinalizadores – um grande exemplo é a resistência que a torcida corinthiana nesse sentido – ou com os bandeirões tem sofrido ataques das federações estaduais, da CBF e dos ministérios públicos. Agora, preconceitos travestidos de “futebol raiz”, como cânticos homofóbicos e as vaias ofensivas (aquelas que denigrem algum jogador, não aquela que aplica pressão no adversário), estão sendo utilizadas como uma desculpa. “Estão deixando o futebol muito chato, não se pode falar mais nada”. É bom lembrarmos que em 2006, às vésperas da copa do mundo na qual o goleiro Dida foi a escolha para o gol, o “humorista” Chico Anysio citou o goleiro Barbosa, da seleção da copa de 1950, onde Chico disse a seguinte se referindo ao vice daquela copa: “Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi Barbosa, de triste memória na seleção”. Na época em que foi dita, gerou pouquíssima indignação dos espectadores e a frase passou batida.

Agora, um volante do Vasco da Gama, Felipe Bastos, gravou um vídeo (com outras pessoas) ainda no gramado do Maracanã onde se dirigia à torcida Tricolor de forma homofóbica. Uma atitude que merecesse represália, ainda mais se tratando de Vasco da Gama, o clube brasileiro responsável por defender minorias e que, na década de 20, era um clube formado por trabalhadores de origem humilde, brancos, negros e mulatos. O time, recém campeão carioca de 1923 teve o acesso negado à Associação Metropolitana de Esportes Athleticos a menos que retirasse do elenco os 12 atletas negros. O Vasco da Gama, na época ainda um time precário, bateu de frente com os grandes clubes, ficando ao lado dos clubes menores em favor dos negros.

Sabemos que infelizmente não foi o último caso, nem mesmo do dia, já que a torcida do Corinthians, outro clube fundado nas bases operárias e minoritárias, durante o clássico contra o São Paulo em Itaquera utilizava de ofensas homofóbicas durante tiros de meta do goleiro São Paulino. Falaremos do Corinthians mais adiante. Um ato que as organizadas do rival Palmeiras já decidiu banir de seu estádio.

Agora, quanto a primeiro caso envolvendo Vasco e Fluminense, já sabemos que a FERJ é uma zona, mas ontem ficou claro que a desmotivação para levar os torcedores ao estádio chegou a níveis inacreditáveis. Na quarta-feira, as ameaças de chuva foram utilizadas como uma maneira de jogar com portões fechados, mostrando uma clara incompetência por parte das instituições envolvidas para que uma partida de futebol aconteça. No domingo, por uma briga envolvendo questões históricas com os lados das torcidas do Maracanã, contratos envolvendo Fluminense e a dona do Consórcio do Maracanã  e irresponsabilidades dos clubes fizeram com que o clássico que decidiu a final virasse manchete por outros motivos, não pelo futebol ou pelo campeão. A torcida vascaína, com ingresso comprado, por valores médios de 40 R$, quase foi impedida de assistir a final devido a uma decisão de uma juíza (a pedido do Fluminense) de que o jogo não tivesse torcida. Claro que houve confusão e, como sempre, quem se ferra é sempre o torcedor que quer ter talvez o único lazer que ainda não lhe tiraram, e que ele continua a frequentar, mesmo mal tratado e indesejado.

A copa do mundo de 2014 nos trouxe as Arenas Padrão Fifa, aquelas onde o ingresso é cada vez mais caro e o pobre é segregado, não é bem-vindo. Aquelas que preferem ter um setor todo vazio, como o caso do setor Oeste da Arena Corinthians, do que diminuir o valor do ingresso e jogar com o estádio lotado. Em contra partida, tivemos também neste domingo, a inauguração de piscinas nos camarotes da Arena Corinthians. Isso deixa evidente, ou melhor, isto é um tapa na nossa cara. É a clara diferença entre os interesses atuais dos clubes de futebol em geral. Se na zona leste agora tem piscina no camarote, na barra funda, a torcida Palmeirense aplaude renda, um fascista ergue a taça do título e em Minas Gerais, o atual prefeito de Belo Horizonte, ex-presidente do Atlético Mineiro, Kalil disse que “estádio é para rico. Pobre vê pela TV e isso não é discriminação”. É o que então?

Se fizermos uma pesquisa rápida sobre os públicos dos estádios mais icônicos do Brasil, vemos isso:

Maracanã: Recorde de 199.854 torcedores presentes na final da copa do mundo de 1950. Atualmente, tem capacidade para  78.838.

Morumbi: Recorde no famoso Corinthians e Ponte Preta de 1977, onde 146.072 pessoas assistiram, inclusive o pai deste que vos escreve. A capacidade atual é de 66.795 espectadores.

Pacaembu: Recorde de 72.018 pessoas em um 3x3 entre Corinthians e São Paulo. Hoje, a capacidade é de 37.730 espectadores.

Mineirão: Recorde de 132.834 pessoas na vitória do Cruzeiro sobre o Vila nova em 1997. A atual capacidade é de 61.846 espectadores.

A capacidade dos estádios diminuiu com a “arenificação” e por conta de "questões de segurança". Mas quando vemos, em uma semi final de taça Guanabara em 2018, um FLAFLU teve 18.627 presentes, temos de repensar algumas questões.




O país de futebol é um país desigual, o décimo mais desigual do mundo e um dos mais violentos por este motivo. Obviamente, o futebol e tudo que o envolva também sofreria estes reflexos da situação social brasileira. Criminalizar torcidas, articular para pessoas não irem ao estádio são aberrações que temos de enfrentar. Não bastasse nossa seleção estar lotada de jogadores que nem sabemos quem são nem onde jogaram, que vão pra Europa no auge ou antes mesmo de se tornarem adultos. Uma seleção que não faz sequer um amistoso no próprio país antes de uma copa do mundo, que prefere jogar na Arábia Saudita do que no Brasil. E Galeano merece outra citação aqui (outra adiante): “O estádio do rei Fahd, na Arábia Saudita, tem palco de mármore e ouro e tribunas atapetadas, mas não tem memória nem grande coisa que dizer.

Uma geração esta vindo e, como se não bastasse dificultar e boicotar o acesso dos torcedores aos estádios, ainda não tem nem mesmo a garantia de assistir ao próprio time jogar na TV, já que apenas 21% dos jogos de Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Santos  passaram na TV aberta (Palmeiras, time da terceira maior torcida, ainda nem fechou contrato com alguma emissora, e corre o risco de ficar fora da grade). Mal passam na tv a cabo, quanto mais na TV aberta. Ou seja, se quiser ver jogo em casa, ainda vai ter que pagar o pay-per-view ou se contentar em ver algum jogo europeu, do campeonato inglês, italiano, espanhol, alemão ou até mesmo o ridículo campeonato francês. Estes sim não tem restrição na TV a cabo. Vai ver é por isso que o moleque da quebrada joga bola com a camisa do Barcelona, do Milan, do Chelsea. O cara sabe a escalação do Manchester City mas não sabe a do rival (ou se abusar, nem mesmo do “próprio” time, se é que já não torce pro Barcelona ou pro Real). Só me pergunto se a molecada se impressiona com os estádios lotados nesses campeonatos.

Pra encerrar, deixo aqui Galeano, mais uma vez: O estádio

Você já entrou, alguma vez, num estádio vazio? Experimente. Pare no meio do campo, e escute. Não há nada menos vazio que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém.

Em Wembley ainda soa a gritaria do Mundial de 66, que a Inglaterra ganhou, mas aguçando o ouvido você pode escutar gemidos que vêm de 53, quando os húngaros golearam a seleção inglesa. O Estádio Centenário, de Montevideo, suspira de nostalgia pelas glórias do futebol uruguaio. O Maracanã continua chorando a derrota brasileira no Mundial de 50. Na Bombonera de Buenos Aires, trepidam tambores de há meio século. Das profundezas do estádio Azteca, ressoam os ecos dos cânticos cerimoniais do antigo jogo mexicano de pelota. Fala em catalão o cimento do Camp Nou, em Barcelona, e em euskera conversam as arquibancadas do San Mamés, em Bilbao. Em Milão, o fantasma de Giuseppe Meazza mete gols que fazem vibrar o estádio que leva seu nome. A final do Mundial de 74, ganho pela Alemanha, continua sendo jogada, dia após dia e noite após noite, no estádio Olimpico de Munique. O estádio do rei Fahd, na Arábia Saudita, tem palco de mármore e ouro e tribunas atapetadas, mas não tem memória nem grande coisa que dizer.



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