Texto de Wesley Sousa - Filosofia UFSJ
Ontologia
e itinerário marxiano
A universidade é hoje dominada
pelo neokantismo, neopositivismo e cia, e não é casual que nos projetos, desde
TCC até os pós-doutorados requerem geralmente do pesquisador aquele velho e
conhecido “formulário” pedindo para que ele elenque categorias com as quais irá
abordar o objeto, ou para nós, a coisa. O que isso significa?
O método, portanto, que diz
Marx, consiste em “elevar-se do abstrato
ao concreto, não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar
do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta” (MARX; 261,
2008).
Consequentemente, Marx não pôs
a dialética de ponta cabeça (aplicou-a a matéria como acreditam esses senhores
acadêmicos neokantianos e neopositivistas), e concluiu que as forças produtivas
inevitavelmente levariam ao comunismo e fim da história (essa é a tese de um
pretendente a Nostradamus do século XX chamado Fukuyama – este que a história
precisa dar um fim logo), ele só pode tomar a dialética como momento subjugado
no interior do ôntico; Marx fundou uma ontologia do ser social, que toma a
epistemologia como momento subordinado da ontologia.
Sobre
o materialismo histórico marxista
Ao escrever que filosofia e
história formam um “bloco”, ou seja, uma estrutura na qual se inserem a
estrutura econômica e as superestruturas ideológicas, não havendo, na
interpretação do filósofo italiano António Gramsci, por assim dizer, uma
“hierarquia” à priori dos momentos da realidade, nem no sentido
idealista, muito menos no sentido materialista. O sujeito e o objeto não são,
senão, momentos relativos da práxis, da atividade histórica dos homens.
Nos termos de Gramsci, a
filosofia da história também se dá, em consequência, na história da filosofia,
pela qual os seres ativos buscam renovação radical na realidade concreta, na
sociedade e na própria história, ou seja: para ele, na fundação de uma nova
cultura ou ordem social. Em suas palavras temos sua seguinte indagação:
[...]
é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira
desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo
“imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários
grupos sociais no quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua
entrada no mundo consciente [...] ou é preferível elaborar a própria concepção
do mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este
trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar
ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não
aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?
(GRAMSCI; 1978, p. 12).
Posteriormente, o pensador
italiano coloca que uma combinação de elementos que culminam em um a
determinada direção a virar uma espécie de “norma”. E, a partir disso, uma ação
coletiva que “vira” história concreta e integral. E assim ele nos escreve em um
trabalho publicado no Brasil com título de “Concepção
dialética da História”:
Do
ponto de vista que nos interessa, o estudo da história e da lógica, das
diversas filosofias dos filósofos não é suficiente. Pelo menos como uma
orientação metodológica, deve-se chamar a atenção para as outras partes da
história e da filosofia; isto é, para as concepções do mundo das grandes
massas, para as dos mais restritos grupos dirigentes (ou intelectuais) e,
finalmente, para as ligações entre esses vários complexos culturais e a
filosofia dos filósofos. A filosofia de uma época não é a filosofia deste ou
daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela
parcela das massas populares. (GRAMSCI; 1978, p. 32).
Incompatibilidade esta que
está no interior da concepção marxiana de teoria e ciência (em sua filosofia).
Teoria pra Marx é “reprodução ideal
do movimento real do objeto”. Isso não significa espelhamento, mas sim que
o ser, o efetivamente existente é “síntese
de múltiplas determinações” que cabe ao pensamento apreender em seu
processo e dinâmica – lembremos que para Marx, e depois Lukács confirmará
– a realidade é um complexo de
complexos. São diferentes níveis de ser que compõe uma totalidade concreta,
multiplamente mediada e determinada.
Vejamos que não à toa Marx
disse que “se a essência e a aparência
coincidissem a ciência seria desnecessária”, isso no livro III de O Capital. Por isso uma teoria como a do fetichismo da mercadoria
pode sobreviver no corpo teórico marxiano, os indivíduos ao realizarem atos
teleológicos de compra e venda produzem uma totalidade que é causal e lhes
confronta como uma causalidade objetiva, com mesmo estatuto ontológico que uma
árvore que cai em um carro.
Podemos afirmar, ao captar
essa essencialidade da obra marxiana, Lênin escreveu em seus cadernos
filosóficos sobre Hegel que “Marx
não nos deu uma lógica, ele nos deu a lógica do Capital”. Marx,
opostamente a Hegel, não encontra uma lógica universal e totalizante que
enquadra todo fato ontológico a um sistema homogêneo e lógico-dialético que é
responsável pelo seu processo. Antes, o captou como epifenômeno, como
manifestação externa do movimento de cisão sujeito e objeto, como vir-a-ser sua
identidade reconciliada.
Mas, isso gera um problema
óbvio que na filosofia materialista, ou seja, onde está também o alvo fatal da
crítica empirista (com exceção de Berkeley) – Desde Locke até os mais
contemporâneos passando pelo Hume. Um desses críticos do chamado racionalismo
absoluto – ou que a forma de conhecimento de mundo se daria apenas pela razão –
ou na sua primazia (aqui de modo mais genérico e comum), foi o próprio Marx. E
assim ele diz na Ideologia Alemã:
“Para
os filósofos, deixar o mundo do pensamento para descer ao mundo real é uma das
tarefas mais difíceis que existem. A realidade imediata do pensamento é a linguagem.
Da mesma forma que os filósofos fizeram do pensamento uma realidade autônoma,
também não poderiam deixar de atribuir à linguagem uma realidade autônoma para
fazerem dela o seu domínio privativo. Eis o segredo da linguagem filosófica, em
que os pensamentos têm, enquanto palavras, um conteúdo próprio. O problema de
descer do mundo das ideias ao mundo real reduz- se ao problema de passar da
linguagem à vida.”.
Em outras palavras, à
linguagem está a consciência prática, isto é, à ação que conduz as nossas
subjetividades que se se objetivam perante o mundo real. Não obstante que
István Mészáros teve muito a dizer sobre isso:
“Todos
nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num
número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente,
com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou
preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS,
I; 1981, p. 269).
Marx:
subjetivismo ou objetividade?
O discurso do indivíduo isolado
em que se pretende o seu próprio nariz ser parâmetro do que seja a realidade,
isto é, não existindo mais verdade objetiva e universal, relativizada e tornada
dependente das “narrativas” dos sujeitos. O discurso que deveria passar o
sentido das ideias torna-se aqui a estética do que se apresenta não no que se
trata objetivamente como a concreção conceitual da regência imanente das coisas
existentes.
Portanto, não é um “ser por
ser” ou “querer ser” como se o homem fosse um oásis da sociedade. É uma estruturação
ontogenética, como colocou o eterno amigo e colaborador intelectual e pensador
também original Friedrich Engels em sua A
origem da família, do Estado e da propriedade privada. Mesmo que os seres
reproduzam isso sem a consciência plena do que fazem, eles mesmos podem,
certamente, ser “transformados”. Porém, isso não paira sob as cabeças como um
éter a vigorar como fogo no pavio e se espalha; é uma agua que bate na pedra
até furá-la lentamente, porque as estruturas de Estado, as dinâmicas capitalistas
e suas instituições (como a cultura, religião, moral e a política)
concentram-no objetividades que sobrepõem sua racionalidade.
Diferente dessa compreensão
totalizante do mundo, os movimentos que estão compelidos a um turbilhão frações
que não encontram seus nexos causais, uma vez que quando tentar abranger ou der
conta de compreender a alguma manifestação social ou a algum epifenômeno,
precisa multifacetá-lo em micro instâncias a fim de dinamitar o todo que
expressa e fracionar as relações do ser. Os fundamentos da forma de como as
coisas decorrem para esses movimentos “reformadores” ou “desconstruidores de
conceitos”, são sempre incompletos, relativizadores, irracionalistas, despidos
de historicidade, materialismo e da dialética: ou seja, tudo daquilo que é mais avançado ao desvelamento da essência do objeto:
a compreensão ontológica e crítica do mundo real.
O ser social da modernidade é
este típico dominado pela ideologia pequeno-burguesa, surgido dos escombros de
um mundo medieval e feudalizado, ainda que negue isso até as profundezas do
Hades. A mais profunda alienação num esgoto onde nos afogamos todos. Para
explicar mais sucintamente sobre essa ideologia produtora e reprodutora da
matriz causal dessa decadência intelectual, o filósofo húngaro György Lukács,
dirá:
“Cada
vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de
coisas mortas e relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou
seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações
humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento
dialético (...) A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito
afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e
as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera
das manifestações secundárias da produção social - que consideram aliás como
fundamentais - que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação,
torna-se para eles coisa impossível. Em definitivo, é tão grande o abismo entre
a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que
toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o
aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de
crises.” (LUKÁCS)
Importante constatar que o
“comportamento” do ideal burguês, ou seja, na sociedade burguesa, não é
sinônimo de “estar na classe burguesa”. Trata-se de formas de reprodução do
real na sua práxis desagregada. Nem deveria haver novidade nisso: Lukács, na
ênfase dada à filosofia de Marx, a burguesia à medida que se transfigura de
classe revolucionária em classe reacionária (mantenedora da ordem sistêmica,
principalmente após 1848), se comprometeu a engendrar uma época de decadentismo
ideológico e de assalto à razão os quais estão diretamente ligados pelas
relações de produção capitalistas.
Neste imenso um complexo de
alienações e por uma gama de fetichismos que possuem seu núcleo duro calcado no
fenômeno do irracionalismo, por sua vez, inextrincável ao metabolismo
societário do capital e à teia ideológica que estão ligados, mal se atentam (bastam-nos
ver as propagandas de empresas dos mais diversos seguimentos) – desde
cosméticos até fast foods –
com slogan “inclusivo” para abocanhar das pautas identitárias seus novos
“mercado-consumidores” que se sentem “representados”.
Considerações
finais
Mesmo em um texto
introdutório, algumas complexidades não podem deixar de serem explicitadas.
Conscientes disso, manter a coerência com o pensamento de um autor, para nós, é
preciso honestidade e capacidade crítica para sua compreensão. Quando Lênin
escreveu que “sem teoria revolucionária
não pode haver movimento revolucionário”, ele já tinha plena consciência da
questão da práxis social dos sujeitos. Não é a consciência que define a
existência dos homens, mas a existência e as relações de produção efetivas que
cunham, em primeira instância, as diversas formas de consciência e de
interações recíprocas entre seres sociais, inclusive as estranhadas. Essa é a
lição simples e complexa de Marx fundamental.
E ainda lembrando Lênin:
homens e mulheres serão protagonistas de sua própria emancipação, mas isso não
se dará apenas pela “força subjetiva da ideia”, nem por “locais de fala” –
eufemismo para discurso liberal que foge e muito a qualquer materialismo e à
própria dialética. Sobre isso, a emancipação humana, em sua concretude,
não será feita ou por homens ou por mulheres independentes de seus
comportamentos, mas sim por “proletários
de todo mundo” que estarão unidos, juntos para a ruptura do velho
mundo, não em sua retração civilizacional. Por isso: Marx é a mais avançada
filosofia de nosso tempo, porque as condições que o fizera ainda estão em plena
vigoração.
“Hegel
faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da autoconsciência a
autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto, vive também em um
mundo real, objetivo e se acha condicionado por ele. Ele vira o mundo de
ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver tanto na cabeça todos os limites, e
isto os faz, naturalmente manter-se de pé para a má sensoriedade, para o homem
real. Além do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia a limitação
da autoconsciência geral, toda a sensoriedade, a realidade e a individualidade
do homem e de seu mundo” (Marx, A Sagrada Família, Boitempo Editora, pág 215)
Referências
bibliográficas
LESSA, Sérgio. Introdução
à filosofia de Marx. 2° edição. São Paulo; editora Expressão Popular, 2011.
LUKÁCS, György. Existencialismo ou Marxismo?. Trad. José Paulo Netto. Rio de
Janeiro; Editora UFRJ.
MARX, Karl. A
Ideologia Alemã. São Paulo; Editora Boitempo, 2007.
Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política.
Expressão Popular.
Marx, Karl. Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. In Teses Ad Feuerbach. Boitempo Editorial.
Marx, Karl. Engels, Friedrich.
A Sagrada Família. Boitempo
Editorial.
Netto, José Paulo. Introdução ao método da teoria social.
In pcb.org.br/portal/docs/int-metodo-teoria-social.pdf
MARX, Karl. A
Sagrada Família. São Paulo, Editora Boitempo.
MÉSZÁROS, István. Marx:
a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.
VAISMAN, Ester. Marx
e a Filosofia. Revista: Nova Economia_Belo Horizonte. 327-341.
mai-ago, 2006.
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