O fundamento estatutário da filosofia de Marx: para além das aparências - Estado Alterado

LEIA +

domingo, 16 de setembro de 2018

O fundamento estatutário da filosofia de Marx: para além das aparências


                                                                                      Texto de Wesley Sousa - Filosofia UFSJ
Ontologia e itinerário marxiano

A universidade é hoje dominada pelo neokantismo, neopositivismo e cia, e não é casual que nos projetos, desde TCC até os pós-doutorados requerem geralmente do pesquisador aquele velho e conhecido “formulário” pedindo para que ele elenque categorias com as quais irá abordar o objeto, ou para nós, a coisa. O que isso significa?

Isso significa que Marx apreende – e, isso se liga diretamente as determinações últimas da relação sujeito e objeto que são apreendidas na relação fundamental e fundante que é o trabalho – sobre a investigação uma determinação não de caráter epistemológico, mas ontológico, a subjetividade é composta por matéria em um estado superior de organização, não é casual que Feuerbach (a quem Marx tanto elogiou e respeitou por ter sido o primeiro filósofo a ter dado o passo na superação do idealismo foi presente em um curto período na articulação teórica marxiana) – ademais, de ter dado o passo fundamental da “virada” ontológica – e Hegel estevavam presentes até as últimas elaborações, como a citação abaixo demonstra. 

O método, portanto, que diz Marx, consiste em “elevar-se do abstrato ao concreto, não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta” (MARX; 261, 2008). 

Consequentemente, Marx não pôs a dialética de ponta cabeça (aplicou-a a matéria como acreditam esses senhores acadêmicos neokantianos e neopositivistas), e concluiu que as forças produtivas inevitavelmente levariam ao comunismo e fim da história (essa é a tese de um pretendente a Nostradamus do século XX chamado Fukuyama – este que a história precisa dar um fim logo), ele só pode tomar a dialética como momento subjugado no interior do ôntico; Marx fundou uma ontologia do ser social, que toma a epistemologia como momento subordinado da ontologia.

Sobre o materialismo histórico marxista

Ao escrever que filosofia e história formam um “bloco”, ou seja, uma estrutura na qual se inserem a estrutura econômica e as superestruturas ideológicas, não havendo, na interpretação do filósofo italiano António Gramsci, por assim dizer, uma “hierarquia” à priori dos momentos da realidade, nem no sentido idealista, muito menos no sentido materialista. O sujeito e o objeto não são, senão, momentos relativos da práxis, da atividade histórica dos homens.

Nos termos de Gramsci, a filosofia da história também se dá, em consequência, na história da filosofia, pela qual os seres ativos buscam renovação radical na realidade concreta, na sociedade e na própria história, ou seja: para ele, na fundação de uma nova cultura ou ordem social. Em suas palavras temos sua seguinte indagação:

[...] é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários grupos sociais no quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente [...] ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (GRAMSCI; 1978, p. 12).

Posteriormente, o pensador italiano coloca que uma combinação de elementos que culminam em um a determinada direção a virar uma espécie de “norma”. E, a partir disso, uma ação coletiva que “vira” história concreta e integral. E assim ele nos escreve em um trabalho publicado no Brasil com título de “Concepção dialética da História”:

Do ponto de vista que nos interessa, o estudo da história e da lógica, das diversas filosofias dos filósofos não é suficiente. Pelo menos como uma orientação metodológica, deve-se chamar a atenção para as outras partes da história e da filosofia; isto é, para as concepções do mundo das grandes massas, para as dos mais restritos grupos dirigentes (ou intelectuais) e, finalmente, para as ligações entre esses vários complexos culturais e a filosofia dos filósofos. A filosofia de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela parcela das massas populares. (GRAMSCI; 1978, p. 32).

Incompatibilidade esta que está no interior da concepção marxiana de teoria e ciência (em sua filosofia). Teoria pra Marx é “reprodução ideal do movimento real do objeto”. Isso não significa espelhamento, mas sim que o ser, o efetivamente existente é “síntese de múltiplas determinações” que cabe ao pensamento apreender em seu processo e dinâmica – lembremos que para Marx, e depois Lukács confirmará – a realidade é um complexo de complexos. São diferentes níveis de ser que compõe uma totalidade concreta, multiplamente mediada e determinada.

Vejamos que não à toa Marx disse que “se a essência e a aparência coincidissem a ciência seria desnecessária”, isso no livro III de O Capital. Por isso uma teoria como a do fetichismo da mercadoria pode sobreviver no corpo teórico marxiano, os indivíduos ao realizarem atos teleológicos de compra e venda produzem uma totalidade que é causal e lhes confronta como uma causalidade objetiva, com mesmo estatuto ontológico que uma árvore que cai em um carro.

Podemos afirmar, ao captar essa essencialidade da obra marxiana, Lênin escreveu em seus cadernos filosóficos sobre Hegel que “Marx não nos deu uma lógica, ele nos deu a lógica do Capital”. Marx, opostamente a Hegel, não encontra uma lógica universal e totalizante que enquadra todo fato ontológico a um sistema homogêneo e lógico-dialético que é responsável pelo seu processo. Antes, o captou como epifenômeno, como manifestação externa do movimento de cisão sujeito e objeto, como vir-a-ser sua identidade reconciliada.

Mas, isso gera um problema óbvio que na filosofia materialista, ou seja, onde está também o alvo fatal da crítica empirista (com exceção de Berkeley) – Desde Locke até os mais contemporâneos passando pelo Hume. Um desses críticos do chamado racionalismo absoluto – ou que a forma de conhecimento de mundo se daria apenas pela razão – ou na sua primazia (aqui de modo mais genérico e comum), foi o próprio Marx. E assim ele diz na Ideologia Alemã:

“Para os filósofos, deixar o mundo do pensamento para descer ao mundo real é uma das tarefas mais difíceis que existem. A realidade imediata do pensamento é a linguagem. Da mesma forma que os filósofos fizeram do pensamento uma realidade autônoma, também não poderiam deixar de atribuir à linguagem uma realidade autônoma para fazerem dela o seu domínio privativo. Eis o segredo da linguagem filosófica, em que os pensamentos têm, enquanto palavras, um conteúdo próprio. O problema de descer do mundo das ideias ao mundo real reduz- se ao problema de passar da linguagem à vida.”.

Em outras palavras, à linguagem está a consciência prática, isto é, à ação que conduz as nossas subjetividades que se se objetivam perante o mundo real. Não obstante que István Mészáros teve muito a dizer sobre isso:

“Todos nós temos consciência da desintegração do pensamento e do conhecimento num número crescente de sistemas à parte, cada qual mais ou menos autossuficiente, com sua própria linguagem, e não assumindo a responsabilidade de saber ou preocupar-se com o que vai além de suas fronteiras.” (MÉSZÁROS, I; 1981, p. 269).

Marx: subjetivismo ou objetividade?

O discurso do indivíduo isolado em que se pretende o seu próprio nariz ser parâmetro do que seja a realidade, isto é, não existindo mais verdade objetiva e universal, relativizada e tornada dependente das “narrativas” dos sujeitos. O discurso que deveria passar o sentido das ideias torna-se aqui a estética do que se apresenta não no que se trata objetivamente como a concreção conceitual da regência imanente das coisas existentes.

Portanto, não é um “ser por ser” ou “querer ser” como se o homem fosse um oásis da sociedade. É uma estruturação ontogenética, como colocou o eterno amigo e colaborador intelectual e pensador também original Friedrich Engels em sua A origem da família, do Estado e da propriedade privada. Mesmo que os seres reproduzam isso sem a consciência plena do que fazem, eles mesmos podem, certamente, ser “transformados”. Porém, isso não paira sob as cabeças como um éter a vigorar como fogo no pavio e se espalha; é uma agua que bate na pedra até furá-la lentamente, porque as estruturas de Estado, as dinâmicas capitalistas e suas instituições (como a cultura, religião, moral e a política) concentram-no objetividades que sobrepõem sua racionalidade.

Diferente dessa compreensão totalizante do mundo, os movimentos que estão compelidos a um turbilhão frações que não encontram seus nexos causais, uma vez que quando tentar abranger ou der conta de compreender a alguma manifestação social ou a algum epifenômeno, precisa multifacetá-lo em micro instâncias a fim de dinamitar o todo que expressa e fracionar as relações do ser. Os fundamentos da forma de como as coisas decorrem para esses movimentos “reformadores” ou “desconstruidores de conceitos”, são sempre incompletos, relativizadores, irracionalistas, despidos de historicidade, materialismo e da dialética: ou seja, tudo daquilo que é mais avançado ao desvelamento da essência do objeto: a compreensão ontológica e crítica do mundo real.

O ser social da modernidade é este típico dominado pela ideologia pequeno-burguesa, surgido dos escombros de um mundo medieval e feudalizado, ainda que negue isso até as profundezas do Hades. A mais profunda alienação num esgoto onde nos afogamos todos. Para explicar mais sucintamente sobre essa ideologia produtora e reprodutora da matriz causal dessa decadência intelectual, o filósofo húngaro György Lukács, dirá:

“Cada vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de coisas mortas e relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento dialético (...) A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera das manifestações secundárias da produção social - que consideram aliás como fundamentais - que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação, torna-se para eles coisa impossível. Em definitivo, é tão grande o abismo entre a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de crises.” (LUKÁCS)

Importante constatar que o “comportamento” do ideal burguês, ou seja, na sociedade burguesa, não é sinônimo de “estar na classe burguesa”. Trata-se de formas de reprodução do real na sua práxis desagregada. Nem deveria haver novidade nisso: Lukács, na ênfase dada à filosofia de Marx, a burguesia à medida que se transfigura de classe revolucionária em classe reacionária (mantenedora da ordem sistêmica, principalmente após 1848), se comprometeu a engendrar uma época de decadentismo ideológico e de assalto à razão os quais estão diretamente ligados pelas relações de produção capitalistas.

Neste imenso um complexo de alienações e por uma gama de fetichismos que possuem seu núcleo duro calcado no fenômeno do irracionalismo, por sua vez, inextrincável ao metabolismo societário do capital e à teia ideológica que estão ligados, mal se atentam (bastam-nos ver as propagandas de empresas dos mais diversos seguimentos) – desde cosméticos até fast foods – com slogan “inclusivo” para abocanhar das pautas identitárias seus novos “mercado-consumidores” que se sentem “representados”.

Considerações finais

Mesmo em um texto introdutório, algumas complexidades não podem deixar de serem explicitadas. Conscientes disso, manter a coerência com o pensamento de um autor, para nós, é preciso honestidade e capacidade crítica para sua compreensão. Quando Lênin escreveu que “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”, ele já tinha plena consciência da questão da práxis social dos sujeitos. Não é a consciência que define a existência dos homens, mas a existência e as relações de produção efetivas que cunham, em primeira instância, as diversas formas de consciência e de interações recíprocas entre seres sociais, inclusive as estranhadas. Essa é a lição simples e complexa de Marx fundamental.

E ainda lembrando Lênin: homens e mulheres serão protagonistas de sua própria emancipação, mas isso não se dará apenas pela “força subjetiva da ideia”, nem por “locais de fala” – eufemismo para discurso liberal que foge e muito a qualquer materialismo e à própria dialética. Sobre isso, a emancipação humana, em sua concretude, não será feita ou por homens ou por mulheres independentes de seus comportamentos, mas sim por “proletários de todo mundo” que estarão unidos, juntos para a ruptura do velho mundo, não em sua retração civilizacional. Por isso: Marx é a mais avançada filosofia de nosso tempo, porque as condições que o fizera ainda estão em plena vigoração.

“Hegel faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da autoconsciência a autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto, vive também em um mundo real, objetivo e se acha condicionado por ele. Ele vira o mundo de ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver tanto na cabeça todos os limites, e isto os faz, naturalmente manter-se de pé para a má sensoriedade, para o homem real. Além do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia a limitação da autoconsciência geral, toda a sensoriedade, a realidade e a individualidade do homem e de seu mundo” (Marx, A Sagrada Família, Boitempo Editora, pág 215)


Referências bibliográficas

LESSA, Sérgio. Introdução à filosofia de Marx. 2° edição. São Paulo; editora Expressão Popular, 2011.
LUKÁCS, György.  Existencialismo ou Marxismo?. Trad. José Paulo Netto. Rio de Janeiro; Editora UFRJ.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo; Editora Boitempo, 2007.
Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Expressão Popular. 
Marx, Karl. Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. In Teses Ad Feuerbach. Boitempo Editorial.
Marx, Karl. Engels, Friedrich. A Sagrada Família. Boitempo Editorial.
Netto, José Paulo. Introdução ao método da teoria social. In pcb.org.br/portal/docs/int-metodo-teoria-social.pdf
MARX, Karl. A Sagrada Família. São Paulo, Editora Boitempo.
MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. São Paulo. 1981, p. 269.
VAISMAN, Ester. Marx e a Filosofia. Revista: Nova Economia_Belo Horizonte. 327-341. mai-ago, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário